Quais os impactos das restrições do STF às operações policiais no RJ?
Após pouco mais de dois anos de restrições impostas pelo Supremo
Tribunal Federal (STF) a operações das forças de segurança no Rio de Janeiro, o
estado convive com incertezas sobre quando (e se) haverá a normalização das atividades.
Enquanto isso, segundo especialistas em segurança pública ouvidos pela
reportagem, lideranças do narcotráfico têm se dedicado a fortalecer e ampliar suas
posições, principalmente por meio da instalação de centenas de barricadas para
impedir o avanço de viaturas; aumentar seus arsenais de guerra e até mesmo
receber traficantes de outros estados que agora percebem os morros fluminenses
como locais seguros para permanecerem impunes enquanto comandam o crime em seus
estados de origem.
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A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635 que tramita no Supremo, conhecida como “ADPF das Favelas”, gerou limitações progressivas à atuação das forças policiais a partir de junho de 2020. Dentre as várias determinações impostas pela Corte estão a proibição a operações nas comunidades durante a vigência da pandemia, exceto em casos “absolutamente excepcionais”; a comunicação prévia ao Ministério Público do Rio de Janeiro (MP-RJ) antes de cada operação; a vedação ao uso de helicópteros; a instalação de câmeras nas fardas dos policiais; dentre outras.
O ministro Edson Fachin, relator da ADPF, chegou a propor até mesmo a
quebra de sigilo de todos os protocolos da atuação policial no estado, sendo
seguido por Rosa Weber, Roberto Barroso e Cármen Lúcia. Os demais ministros, no
entanto, vetaram essa medida argumentando que poderia comprometer a própria
eficácia da ação das forças de segurança.
Parte das restrições têm recebido críticas de especialistas, que apontam riscos significativos à segurança pública. Recentemente, o secretário de Polícia Militar do estado, coronel Luiz Henrique Marinho Pires, atribuiu ao STF a culpa pela migração de criminosos de outros estados para o Rio de Janeiro. Segundo informações de inteligência da Polícia Civil, até o momento foi identificada a presença de centenas de criminosos de onze estados brasileiros que se deslocaram para o Rio de Janeiro após a entrada em vigência das restrições.
“A restrição à atuação policial, que na verdade é uma proibição que permite que a polícia atue apenas em situações absolutamente excepcionais, possibilitou que os criminosos se armassem mais, se fortalecessem, aumentassem seus lucros e aumentassem muito os obstáculos em vias públicas, as barricadas que impedem a movimentação de blindados”, explica o delegado Fabrício Oliveira, coordenador da Coordenadoria de Recursos Especiais da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro (CORE/PCERJ). “Apesar de termos tido êxito nas operações graças ao profissionalismo dos policiais, as dificuldades aumentaram muito”.
Entre junho e julho, por determinação do STF, o governo estadual recebeu propostas do Ministério Público e da Defensoria Pública locais, da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e de ONGs de direitos humanos para reduzir a letalidade nos confrontos entre policiais e traficantes. Nos documentos com as sugestões, DP-RJ e OAB alegaram a existência de “racismo estrutural” em ações das forças de segurança para justificar o refreamento das operações. O governo de Cláudio Castro (PL) deve, nos próximos dias, entregar ao Supremo o Plano Estadual de Redução da Letalidade Policial, também por ordem da Corte.
A ADPF 635 tem sido marcada por constantes manifestações de partidos políticos de esquerda – Partido Socialista Brasileiro (PSB) e Partido dos Trabalhadores (PT) –, assim como de ONGs que integram a ação como amicus curiae, pedindo cada vez mais restrições às operações. Uma dessas entidades é apontada por um deputado estadual como sendo ligada a lideranças do narcotráfico, que têm forte interesse no esvaziamento da presença policial nas comunidades dominadas pelas facções.
Mais barricadas, mais armas e ampliação do território dominado pelo crime
Desde o início do enfraquecimento das operações policiais, lideranças
do narcotráfico ampliaram significativamente o número de obstáculos feitos de
concreto, ferragens e outros elementos para impedir a passagem de veículos das
forças de segurança.
Moradores relataram que as barricadas prejudicam o dia a dia
das comunidades carentes, já que inviabilizam o trajeto dos veículos – até
mesmo ambulâncias e caminhões de bombeiros com frequência são impedidos de
fazer deslocamentos de emergência.
Os obstáculos, entretanto, têm uma função a mais na defesa territorial do tráfico. Ao serem obrigados a descer dos blindados para fazerem a retirada das barricadas, os agentes de segurança são frequentemente alvos de emboscadas. Foi assim que o policial civil André Frias morreu durante a operação no Jacarezinho em maio do ano passado.
“Nesses dois anos o tráfico teve tempo para se organizar com tranquilidade dentro das comunidades carentes. Hoje você vê uma barricada que só tinha dentro da comunidade nas vias principais. Eles avançaram, ganharam mais terrenos”, diz Alexandre Martins, sargento da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ), com 20 anos de experiência em operações nos morros fluminenses. “Anteriormente, eles sabiam que se ficassem na rua a qualquer momento poderia chegar uma viatura. Hoje, sabem que as operações são somente as planejadas. Isso tira o efeito-surpresa, que é o que permite que os traficantes sejam pegos. Nesse cenário atual eles não perdem armamento, não perdem drogas e só vão se fortalecendo financeiramente, o que permite que consigam cada vez mais arquitetar essa guerra”, complementa Martins que, em duas décadas de atuação no combate ao crime organizado, já foi ferido em confronto com traficantes em seis ocasiões, sendo alvejado por um total de nove tiros de fuzil.
Fortalecimento do crime organizado aumentou risco para moradores inocentes nas operações
O fortalecimento das facções de 2020 para cá tem resultado em um grau
de resistência por parte do crime organizado muito mais severo ao defenderem
seus territórios das forças policiais e de facções rivais. Aliado a isso está a diretriz do
Comando Vermelho, principal facção que domina o narcotráfico no estado, de não
permitir que seus “soldados” abandonem armamento ou posições de tiro durante os
confrontos – desobediência a esta ordem pode ser punida com a morte.
Como resultado, os confrontos entre policiais e traficantes têm sido mais
violentos e gerado ainda mais risco aos moradores.
Como exemplo, entre as
operações com maior letalidade contra o tráfico na história do estado, três
ocorreram durante o período de restrições do STF. “O tráfico se fortaleceu
porque quando não há ações da polícia, o resultado é o incremento no número de
armas em poder das facções e a ampliação dos seus territórios. Eles se
aproveitaram da inércia do Estado para agir”, explica Rogério Greco,
especialista em segurança pública e crime organizado e pós-doutor em Direito. “Pelo contrário, a
atividade policial deveria ser incessante, contínua, porque quando as
organizações criminosas têm fôlego para agir elas crescem, e é isso que está
acontecendo. Essa decisão do STF vai contra tudo aquilo que se estuda e se
pratica com relação à segurança pública”, ressalta Greco, que atualmente ocupa
o cargo de secretário de Justiça e Segurança Pública de Minas Gerais.
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Para ilustrar a complexidade do cenário, na operação realizada na quinta-feira (21) no Complexo do Alemão, criminosos utilizaram metralhadoras antiaéreas, que possuem capacidade para perfurar blindagens e neutralizar aviões, para derrubar um helicóptero da Polícia Civil – veja o vídeo. Os traficantes também lançaram mão de rajadas de metralhadoras a esmo em meio a conjuntos residenciais, colocando em risco moradores dentro de suas casas. Dezenas de granadas também foram lançadas contra as forças de segurança, também aumentando a possibilidade de danos à população.
Para o sargento Martins, ao invés do refreamento do combate às facções é preciso intensificar o combate ao crime organizado em conjunto com as forças armadas brasileiras. “Os criminosos oprimem os moradores da comunidade de todas as formas, usam essas pessoas como escudo humano e recorrem a táticas de guerrilha e ao uso de armamento de guerra para defender seus territórios. Hoje o que vem acontecendo no estado não é trabalho apenas de segurança pública, hoje se vive uma guerra”, afirma. “Não é só a ADPF que está causando o caos. Isso foi somente a cereja do bolo, mas o bolo já está montado há muito tempo e é muito grande”, destaca.
Segundo dados de 2020 da Polícia Civil, há 56,6 mil criminosos em liberdade portando armas de fogo de grosso calibre no estado. O número é maior do que todo o efetivo da PM fluminente, que possui atualmente 45 mil policiais, com apenas metade deles atuando nas ruas. Somado a isso, há 51 mil presos ligados a facções no estado. São 1,4 mil comunidades dominadas pelo crime organizado – 81% delas controladas pelo tráfico e 19% pelas milícias.
Narrativas de “chacinas” e “massacres” antes da apuração de órgãos públicos
Considerada a operação mais letal da história do Rio de Janeiro, a
operação no Jacarezinho realizada em maio do ano passado foi descrita nas redes
sociais de parte das ONGs atuantes na ADPF 635 como “chacina” ou “massacre”
executado pelas forças de segurança. Apesar disso, a ocorrência de abusos por
parte de policiais foi afastada em 26 das 27 mortes de suspeitos de atividades
criminosas pela força-tarefa do Ministério Público estadual e/ou pela Justiça.
Em nota enviada à Gazeta do Povo, o MP-RJ afirma que nesses casos “não
foram encontradas evidências capazes de indicar a prática de crime por parte
dos policiais nos casos relacionados, com conclusão para mortes decorrentes de
confronto armado”.
Das três denúncias feitas pelo Ministério Público, a Justiça aceitou apenas duas: uma contra dois policiais por suposto homicídio doloso e fraude processual em relação a uma das mortes, e a outra contra traficantes responsáveis pela morte de um policial civil durante a operação.
Para o delegado Fabrício Oliveira, é prejudicial a ação de grupos ideológicos ao rotular como chacina ou massacre uma ação policial ainda durante a operação ou nas primeiras horas após seu encerramento, ou seja, antes de haver informações de investigação feita pelos órgãos públicos ou indícios concretos de ilegalidade. Na avaliação do coordenador da CORE, essas condutas mancham a imagem das forças policiais e interferem diretamente na opinião pública.
Em entrevista coletiva no final de maio, após a operação na Vila Cruzeiro, o governador Cláudio Castro rechaçou o uso da palavra “chacina” usada por um repórter para se referir ao caso. “Não houve chacina alguma. O que houve foi uma operação em que a polícia entra às quatro da manhã e tem um bonde fortemente armado saindo. Eles tentaram fazer chacina com a polícia. Foi o inverso. Não há chacina nenhuma ali. A polícia cumpriu o papel dela. Tanto que eram três forças policiais diferentes. Achar que eles ficaram no cafezinho antes combinando chacina é no mínimo desrespeitar as forças policiais”, declarou o governador.