“Jabuti” da Eletrobras exige térmicas onde não há gás e pode custar caro
A privatização da Eletrobras está sacramentada, carimbando a principal desestatização na caderneta do mandato de Jair Bolsonaro (PL), mas a lei que permitiu a operação terá mais desdobramentos em breve. Está marcado para setembro um leilão para contratar 8 gigawatts (GW) em geração térmica, a fim de cumprir uma exigência imposta por uma emenda ao texto original da MP da Eletrobras – compromisso este que não guardava qualquer relação com a privatização em si.
Incluído por parlamentares durante a tramitação no Congresso, o “jabuti” – como é apelidado esse tipo de adição a projetos de lei e assemelhados – trará custos não só com a obrigação de compra dessa energia, relativamente mais cara e poluente, mas também com a construção da infraestrutura para abastecer as usinas. Isso porque algumas dessas termelétricas, movidas a gás natural, terão de ser instaladas em regiões que não têm oferta do combustível.
A potência das termelétricas previstas pelo “jabuti” equivale a quase 60% da capacidade da hidrelétrica de Itaipu. No texto da lei estão descritos e subdivididos os 8 GW, a serem contratados na modalidade de reserva de capacidade:
- 1 GW no Nordeste, nas regiões metropolitanas “que não possuam na sua capital ponto de suprimento de gás natural na data de publicação desta lei”;
- 2,5 GW no Centro-Oeste, nas capitais ou regiões metropolitanas também sem oferta;
- 2 GW na região Sudeste, dos quais 1,25 GW para estados que possuíssem ponto de suprimento de gás natural na data de publicação da lei e 0,75 GW para a área de influência da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) que não tivessem suprimento de gás natural na data; e
- 2.5 GW na região Norte, distribuídos nas capitais dos estados ou região metropolitana onde seja viável a utilização das reservas provadas de gás natural nacional existentes na Região Amazônica, garantindo, “pelo menos, o suprimento a duas capitais que não possuam ponto de suprimento de gás natural na data de publicação desta lei”.
A contratação dessas novas usinas deverá respeitar o preço-teto do leilão A-6 (energia nova) de 2019, que foi de R$ 292 por megawatt-hora (MWh), mediante correção. A última estimativa do governo era de que, atualizado por parâmetros associados à inflação e ao preço do combustível, o valor chegue aos R$ 360 por MWh no momento da contratação.
Contratação é obrigatória, mas depende de gasodutos ainda inexistentes
A Empresa de Pesquisa Energética (EPE), ligada ao Ministério de Minas e Energia (MME), trabalha desde o início do ano no Plano Indicativo de Gasodutos 2022 (PIG), que terá como foco principal o estudo de redes para o fornecimento de gás natural ao conjunto de usinas que, a plena capacidade, devem consumir cerca de 32 milhões de metros cúbicos de gás por dia. Antes disso, no entanto, será necessária a estruturação e efetiva construção de infraestrutura que leve insumos até as usinas.
O texto que se tornou lei foi alvo de críticas justamente por “atropelar” o planejamento setorial, ainda que a interiorização da oferta de gás natural seja desejo antigo do governo brasileiro. Hoje a malha de gasodutos brasileira tem 44 mil quilômetros de extensão e está concentrada perto da costa litorânea, mas sua expansão fica consideravelmente travada em função de altos custos, barreiras no âmbito ambiental e falta de demanda que justifique os investimentos.
Segundo a Associação Brasileira das Empresas Distribuidoras de Gás (Abegás), o esforço por universalizar o uso do gás natural no Brasil tem potencial para dar mais competitividade e produtividade à economia do país além de atenuar incertezas de operação e aumentar a segurança energética para o Sistema Interligado Nacional (SIN).
Para a entidade, a contratação dos 8 GW em geração térmica prevista junto da privatização da Eletrobras “irá assegurar a interiorização do gás natural, viabilizando a construção de plantas de fertilizantes e energia para a movimentação dos pivôs no agronegócio e ao mesmo tempo preservando a água dos reservatórios hidrelétricos”.
Para críticos, como o presidente da Associação Brasileira dos Investidores em Autoprodução de Energia (Abiape), Mario Luiz Menel, as térmicas e gasodutos são bem-vindos contanto que se respeite o planejamento feito pela EPE e o que pede o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), com características que visem uma expansão ótima do sistema e se enquadrem numa ótica econômica de desenvolvimento do mercado.
Preocupação adicional é com a contratação de uma energia mais cara a ser usada em um futuro que promete ser de sobra de oferta, num negócio que pode se tornar desfavorável ao fim das contas. Assim, a adição do volume de capacidade de reserva fora do planejamento já estabelecido poderia levar o consumidor a pagar por sobras de energia, reduzindo a competição ao criar uma espécie de reserva de mercado.
Cálculos da Associação dos Grandes Consumidores Industriais de Energia e de Consumidores Livres (Abrace) são de, que sozinhos, os custos das térmicas da Eletrobras podem representar alta de 10% na tarifa de energia a partir de 2030.
Jabutis dificultam planejamento antecipado
Cálculos da mesma Empresa de Pesquisa Energética apontam que inserções à política energética feitas pelo Legislativo – incluído aqui o jabuti das térmicas – devem representar incremento de R$ 52 bilhões só em custos de operação até 2031. Em termos de investimentos, são R$ 18,3 bilhões a mais.
A conta integra o Plano Decenal de Expansão de Energia 2031 (PDE, documento elaborado pela estatal para traçar cenário de dez anos do segmento no país) e considera, ainda, a contratação de pequenas centrais hidrelétricas e a renovação do Proinfa – obrigações que também foram inseridas na lei de privatização da Eletrobras –, além das próprias diretrizes energéticas estabelecidas pelo MME para a década. Ainda assim, a expansão de oferta nesse panorama demonstra predominância das termelétricas, com quase 60% do total indicativo.
Segundo o documento da EPE, “quando analisado o período após o horizonte decenal, entre 2032 e 2036, devido ao término da entrada de expansão para atendimento a Lei 14.182, o modelo volta a indicar expressivo montante de oferta eólica e fotovoltaica […]. A complementação de potência para o pós horizonte é predominantemente realizada por termelétricas sem geração compulsória”, aponta o texto. Em última análise, a perspectiva é de que a entrada da geração das térmicas adicionais atrase projetos de fontes renováveis.
Ainda de acordo com a estatal, “singularidades associadas à contratação em questão dificultam a adoção de estratégias de planejamento antecipativo como as que vêm sendo adotadas nos estudos proativos de transmissão, orientados à integração de fontes renováveis”.
Na prática, a situação pode significar a necessidade de expansões não previstas para acomodar as usinas da lei 14.182/2021, não apenas para fazer chegar o combustível às termelétricas, mas para levar a energia gerada por elas até o consumidor. Além da construção dos gasodutos, será necessário também erguer rede elétrica e de transmissão para que o fornecimento faça sentido.
O desafio é crucial, uma vez que o país já enfrenta dificuldades para levar a energia de um ponto a outro do Sistema Integrado Nacional (SIN). Uma fotografia clara disso foi revelada durante a crise hídrica de 2021, quando o Nordeste tinha recordes de geração eólica e, ainda assim, foi preciso importar energia e contratar térmicas para dar conta do consumo no Sudeste.
Segundo a EPE, planejamentos que estão em andamento justamente para ampliar a capacidade de escoamento de energia renovável das regiões Norte/Nordeste para as regiões Sudeste/Centro-Oeste podem contribuir para mitigar eventuais restrições das novas contratações térmicas, mas só se saberá das demandas efetivas depois do leilão, com vencedores conhecidos.
A volta do Brasduto?
De acordo com o Ministério de Minas e Energia, os custos para a “construção de eventuais gasodutos estarão embutidos no valor do preço-teto do leilão”, mas nos bastidores há entendimento de que a obrigatoriedade da contratação da capacidade de reserva das térmicas seria ambiente propício para a tentativa de retomada de um velho conhecido: o Brasduto, ou Fundo de Expansão dos Gasodutos de Transporte e Escoamento da Produção.
Desenhado para ser financiado por dinheiro do pré-sal, ele já chegou a ser aprovado no Congresso, em 2020, mas foi vetado pelo presidente Jair Bolsonaro. Na ocasião, o Brasduto fora inserido, também como jabuti, em um projeto que tratava de risco hidrológico e estava estimado em R$ 100 bilhões.
Agora, a expectativa é de que o lobby pela criação do fundo ressurja durante as análises de outro projeto, o PLP 414/2022, de modernização do setor elétrico, aprovado no Senado e em tramitação na Câmara dos Deputados.
Se de fato vier, e vier no mesmo formato observado nas tentativas anteriores de tirá-lo do papel, o Brasduto tiraria o custo as obras da conta do consumidor de energia, mas o repassaria ao pagador de impostos. Isso porque o fundo seria subsidiado por recursos da arrecadação federal que, pela regra atual, são direcionados para investimentos em saúde e educação.