Inadimplência bate recorde no Brasil. O que isso diz sobre a economia
Os brasileiros estão mais “pendurados” do que nunca. A inflação elevada, rodando acima dos 10% ao ano desde outubro, e o aumento na taxa Selic, que começou em março do ano passado, deixam o bolso mais “apertado” e dificultam a renegociação de dívidas. Segundo a Serasa Experian, em julho, 67,6 milhões de pessoas estavam inadimplentes no país, o maior número desde o início da série histórica, em 2016.
A inadimplência das pessoas físicas (atrasos de mais de 90 dias) atingiu 3,66% em junho, de acordo com dados do Banco Central (BC). Em dezembro, era 2,95%. Os atrasos de 15 a 90 dias correspondiam, no mesmo mês, a 5,22% do total da carteira.
Grandes varejistas estão ampliando as projeções de perdas com calotes. Segundo o jornal “Valor”, as provisões para devedores duvidosos chegaram a R$ 7,8 bilhões no primeiro semestre na soma das dez maiores redes, quase 22% a mais que no fim de 2021 e 42% acima do valor da primeira metade do ano passado.
Mesmo os bancos, que vêm apresentando bons lucros, também notam o aumento na inadimplência. Segundo os balanços do segundo trimestre, ela subiu em comparação com o início do ano. No Itaú, ela passou de 2,6% da carteira para 2,7%. No Bradesco, foi de 3,2% para 3,5% e, no Banco do Brasil, de 1,9% para 2%.
Pelo menos um em quatro brasileiros vive dificuldade para pagar as contas, aponta pesquisa divulgada pela Confederação Nacional da Indústria (CNI). E em um cenário em que é difícil sair do vermelho no orçamento doméstico, poucos poupam – 29% do total.
Outro levantamento, da Confederação Nacional do Comércio (CNC), mostra que, em julho, 78% dos lares brasileiros estavam endividados, 22% com mais da metade da renda comprometida e 29% com contas atrasadas.
A situação é pior entre as famílias que ganham até dez salários mínimos, aponta a economista Izis Ferreira, da CNC. Entre elas, o percentual das que têm contas em atraso é de 33%.
Inflação traz complicações ao orçamento doméstico
O aumento da inflação é um dos fatores que complicam o orçamento doméstico. Segundo o IBGE, quase 63% dos itens que compõem o IPCA tiveram alta de preço em julho, mesmo com uma deflação geral de 0,68%.
“Está sobrando menos dinheiro para pagar as contas, mesmo as famílias pesquisando mais e cortando os supérfluos”, diz a economista da CNC. A alimentação no domicílio ficou 17,5% mais cara nos 12 meses encerrados em julho e o vestuário, 16,67%. O botijão de gás encareceu 21,36% e o óleo diesel, essencial para os fretes, 61,98%.
Outro impacto é sobre a remuneração decorrente do trabalho: no segundo trimestre ela estava em R$ 2.575, 4,7% abaixo do registrado em igual período de 2021, já descontada a inflação. E, mesmo com o mercado de trabalho mais aquecido, só 16,6% das categorias com carteira assinada tiveram reajuste acima da inflação nos 12 meses encerrados em julho, segundo a Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe).
“Não é uma questão de superendividamento”, pondera Luiz Rabi, economista da Serasa Experian. A dívida média dos que têm o CPF negativado é de R$ 4.211,80 e é, em sua maioria, de natureza não financeira (59%), ou seja, com contas mensais (luz, tevê por assinatura, gás), telefonia, varejo, serviços e securitizadoras.
Juros em alta dificultam renegociação de dívidas
Além da inflação, que está corroendo o poder aquisitivo dos
rendimentos, outra dificuldade na hora de negociar as dívidas está nos juros em
alta. Isto dá menos margem para facilitar a quitação das pendências, apontam economistas
ouvidos pela Gazeta do Povo.
A taxa média cobrada das pessoas físicas passou de 5,99% ao
mês, em julho de 2021, para 6,83%, no mês passado, de acordo com a Associação
Nacional dos Executivos de Finanças, Administração e Contabilidade (Anefac).
O aumento da inadimplência acaba criando uma bola de neve para quem está “pendurado”, já que faz parte da composição do custo do dinheiro.
“Este cenário não será diferente nos próximos meses. As taxas de juros continuarão subindo, tendo em vista a piora do cenário econômico, com maior risco de crédito e da elevação da inadimplência”, diz o diretor executivo de estudos e pesquisas da Anefac, Miguel Ribeiro de Oliveira.
Ferreira lembra que muitos consumidores estão endividados em
mais de uma modalidade, o que também complica as negociações. Dados da Serasa
Experian mostram que cada inadimplente tinha, em média, 3,46 dívidas em junho.
É o número mais elevado desde janeiro de 2021.
Cenário ainda deve demorar para ser revertido
O cenário de inadimplência em alta deve demorar, pelo menos,
alguns meses para ser revertido. Uma das visões mais otimistas é de Flávio
Calife, economista da Boa Vista Serviços.
Ele acredita que a mudança de cenário poderá ser vista a
partir do início do ano que vem, já que a taxa de desemprego vem caindo – ela
foi de 9,3% no segundo trimestre, de acordo com o IBGE – e o mercado de
trabalho permanece aquecido. Foram abertas 1,3 milhões de oportunidades com
carteira assinada no primeiro semestre, segundo o Cadastro Geral de Empregados
e Desempregados (Caged).
Mas, para Rabi, da Serasa Experian, também é necessário que a inflação caia consistentemente. Segundo ele, somente a deflação de 0,68% registrada em julho e a possível continuidade do movimento em agosto não são suficientes para reverter o quadro de inadimplência em alta. Até lá, segundo ele, a tendência é de ela continue subindo.
O aumento do Auxílio Brasil, de R$ 400 para R$ 600, e os benefícios dados a caminhoneiros e taxistas podem dar um alívio. Mas Rabi lembra que, não são todos que recebem e que os valores são corroídos pelo aumento nos preços.
Ferreira, da CNC, destaca que a queda na inflação poderá tirar um pouco da pressão sobre o orçamento doméstico, mas a situação financeira das famílias continuará complicada, uma vez que, de acordo com a entidade, 18,1% delas se sentem muito endividadas.
Menos força no crescimento
O impacto da inadimplência mais elevada e do maior aperto monetário deve se refletir no consumo das famílias neste segundo semestre e no próximo ano. “Também não teremos fatores como saques extraordinários do FGTS, antecipações de 13.° ou novas liberações de benefícios”, destaca a economista da CNC.
Os segmentos que tendem a ser mais afetados são aqueles que mais dependem de crédito, como móveis e eletrodomésticos, material de construção e veículos.
Todos esses segmentos vêm perdendo tração no ritmo de crescimento, apontam dados do IBGE. Em junho de 2021, as vendas de veículos, motocicletas, partes e peças cresciam 8,3% no acumulado de 12 meses, e o ritmo de avanço chegou a 17,4% em fevereiro de 2022, mas na medição mais recente, de junho, avançavam apenas 3%.
As vendas de materiais de construção, que em junho de 2021 cresciam 22% no acumulado de 12 meses, caíam 7,7% um ano depois. Na mesma comparação, as vendas de móveis e eletrodomésticos passaram de um crescimento de 16,3% para uma queda de 15%.
Mesmo assim, a XP Investimentos projeta que o consumo das famílias, correspondente a 65% do PIB, irá crescer 2,6% neste ano. “Os números estão sendo alavancados pela melhoria nas condições de trabalho – o desemprego está em seu menor nível desde o quarto trimestre de 2015 –, maiores transferências governamentais de renda e maior uso de recursos que estavam aplicados no mercado financeiro, a poupança circunstancial”, diz o economista Rodolfo Margato.
Referência: https://www.gazetadopovo.com.br/economia/brasileiros-pendurados-impactos-economia/