Como é o dia de manifestantes acampados no QG do Exército em Brasília
A divulgação do relatório de fiscalização do Ministério da Defesa sobre as urnas eletrônicas – que não apontou fraude, mas também não excluiu essa possibilidade – não desmobilizou os apoiadores do presidente Jair Bolsonaro (PL) que se concentram, há 11 dias, em frente ao Quartel General do Exército, em Brasília. Eles não aceitam o resultado da eleição presidencial vencida por Luiz Inácio Lula da Silva (PT), embora digam que a luta é por mais clareza no sistema eleitoral.
Os manifestantes ficam espalhados em barracas montadas na Praça dos Cristais, um espaço de mais de 100 mil metros quadrados localizada no Setor Militar Urbano, área que concentra instalações e residências militares na capital federal. Pistas ao redor da praça estão ocupadas por mais de uma centena de caminhões e ônibus e a expectativa dos manifestantes é que mais veículos pesados cheguem nos próximos dias para engrossar o ato.
A Gazeta do Povo visitou a manifestação na manhã e na tarde desta quinta-feira (10). Em frente ao QG, sob forte sol, apenas um pequeno caminhão de som concentrava a atenção de algumas centenas de pessoas ao redor, que assistiam ao discurso de um manifestante. “O que está sendo dito pelo relatório, não acreditem”, disse o homem, com idade aparente de cerca de 50 anos, fazendo uma referência ao documento da Defesa. Uma mulher, com cerca de 40 anos, que subiu depois, o interrompe: “O STF é obrigado a informar os algoritmos das urnas. Nós queremos transparência no processo, e não sairemos daqui. Queremos a resposta e não queremos que ninguém seja diplomado”, afirmou.
Ambos evitaram falar com a reportagem, assim como vários outros manifestantes abordados evitam se expor, serem gravados ou se deixarem fotografar e revelar seus nomes. Receiam ser considerados como “líderes” do movimento e responsabilizados criminalmente.
Nesta semana, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou que as polícias de todos os estados e Distrito Federal informem os nomes de organizadores e financiadores dos “atos antidemocráticos” que ocorrem em frente aos quartéis de várias capitais e cidades Brasil afora.
Em Brasília, grandes tendas foram montadas na Praça dos Cristais para oferecer refeições de graça ao longo de todo o dia. Cartazes de cartolina escritos à mão avisam café da manhã servido às 8h30, almoço às 12h30, lanche da tarde às 16h e jantar às 20h30. Há também banheiros químicos e um espaço para banho masculino e feminino.
Os manifestantes montaram centenas de barracas de camping para dormir e se organizam de maneira informal e colaborativa. Em volta da praça, há carros estacionados de diversos estados, vários motorhomes, pequenas carretas e ônibus fretados.
Um homem de 30 anos que estava perto do caminhão de som afirmou à reportagem que há um grupo com cerca de dez manifestantes que se comunicam de forma mais frequente para providenciar a estrutura do ato. Um cuida da alimentação, outro do carro de som, outro dos banheiros químicos, outro da chegada de caminhões, etc. “Não há líder”, diz ele, que mora em Brasília e está no ato desde o primeiro dia. “As pessoas estão vindo de forma espontânea e se organizando aqui mesmo, cada um ajudando como pode”, completa.
No caminhão de som, outro homem com cerca de 40 anos fala em tom religioso. Lembra passagens do livro de Êxodo, quando o povo hebreu atravessou o deserto, fugindo da escravidão do Egito rumo à terra prometida. “Faraó e seu exército pisaram em terra seca, mas depois o mar [Vermelho] se fechou sobre eles, mas o povo de Deus passou”, diz.
Ele aponta para uma tenda mais afastada onde todos os dias evangélicos se reúnem para orar de três em três horas, desde a manhã até as 20h, quando ocorre um culto. Há também uma pequena tenda católica, onde mulheres se reúnem em volta de imagens de Maria para rezar.
Pedidos de mais clareza no sistema eleitoral
O homem que falou da travessia do deserto no caminhão de som disse depois à reportagem que a manifestação é para exigir clareza do sistema eleitoral e não para contestar o resultado da eleição. “É uma manifestação pacífica e democrática, de pessoas que não confiam num sistema que não tem como comprovar que seus votos foram computados de forma verdadeira, não há comprovante.”
Pouco antes, no fim da manhã, a Defesa havia divulgado uma nota para esclarecer que o relatório de fiscalização, “embora não tenha apontado, também não excluiu a possibilidade de existência de fraude ou inconsistência nas urnas eletrônicas e no processo eleitoral de 2022”.
Além disso, destacou novamente um “risco relevante” à segurança no processo de compilação dos programas instalados nas urnas, em razão do acesso à rede dos computadores que realizam o procedimento; da possibilidade de existência de um “código malicioso” nas máquinas, hipótese que não foi afastada pelo teste de integridade realizado no dia da eleição; e ainda as restrições de acesso e exame aprofundado dos militares ao código-fonte e outros softwares de terceiros das urnas.
Entre os manifestantes, correm soltos boatos de que o relatório é apenas mais um passo numa suposta “estratégia”, que estaria sendo articulada por Bolsonaro e militares da cúpula das Forças Armadas para demonstrar uma grande fraude nas eleições. Ninguém sabe esclarecer ao certo quem estaria envolvido nessas discussões, mas se diz que existiriam autoridades importantes do entorno do presidente não só das Forças Armadas, mas de outras instituições.
“Mas não pode desmobilizar os atos”, diz um dos manifestantes à reportagem, como se essa fosse uma determinação de autoridades envolvidas na suposta “estratégia” – os protestos em frente aos quartéis seriam fundamentais para mostrar que haveria apoio popular a uma reviravolta na sucessão presidencial.
Entre os populares, é nítido o temor com um novo governo Lula. Além dos religiosos, inseguros com um possível retrocesso na agenda voltada à defesa da família e do combate às drogas, há também manifestantes ligados à agropecuária, que receiam maior taxação da produção, invasões de terra e desapropriações, e fiscalização abusiva por parte de órgãos ambientais – ameaças que veem como dissipadas no governo Bolsonaro.
Temporal pega manifestantes de surpresa
Nesta quinta, segundo soldados que fazem a vigilância externa de alguns edifícios militares no local, a manifestação está mais vazia que no último fim de semana e também no feriado de Finados. No início da tarde, um forte temporal, com cerca de uma hora e meia, fez todos se recolherem para as tendas que preparavam o almoço. O vendaval derrubou pequenas árvores, e uma chuva torrencial fez a água alagar a maioria das barracas.
Como é típico dessa época do ano em Brasília, após a tempestade, o tempo voltou a abrir. As pessoas voltaram às áreas externas para circular e alguns manifestantes ofereciam ajuda para se dirigir ao comércio e comprar novos colchonetes e roupas de cama. Após o almoço, o chão permaneceu limpo – pratos, talheres e copos descartáveis são recolhidos em sacos plásticos e levados pelos caminhões de lixo que passam no local.
Ao longo da tarde, mais caminhões chegaram e estacionaram nos arredores. Por volta das 16h, mais de uma centena deles – reunidos em duas pistas nos arredores do QG – iniciaram um grande buzinaço. O público se animou e voltou a entoar brados, como “Forças Armadas, salvem o Brasil”.
Após as 17h, o tempo voltou a fechar, com nuvens cinzentas, e começou a chuviscar. Pais de famílias acampadas começaram a colocar de volta nas barracas colchões ainda molhados que, inutilmente, haviam sido estendidos sobre cadeiras de praia para secar ao sol. Mulheres e crianças começam a se agasalhar, enquanto os maridos desmontam tendas em áreas alagadas da praça para deslocá-las para uma região mais seca.
Reunião de emergência das Forças Armadas alimenta expectativas
No caminhão, uma mulher subiu ao palco improvisado para voltar a animar o público. Já se comentava muito entre os manifestantes a notícia de que Bolsonaro estaria numa reunião de emergência com o ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira, e generais do Alto Comando do Exército, para discutir a fiscalização dos militares nas urnas e os atos em frente aos quartéis – a reunião não foi confirmada pelo Ministério da Defesa. O Exército faz reuniões rotineiras, sem a presença do presidente e do ministro.
“Está acontecendo nesse exato momento. Diga para quem está ao seu lado: ‘eu só saio daqui quando as coisas se resolverem’. Se vierem com notícias de que tem que sair daqui, não acreditem. Não desistam. É uma guerra e vocês são os soldados do Brasil. Estão vindo mais índios para cá, gente de São Paulo, ônibus de outras regiões, quatro de Rondônia! Queremos cinco milhões de pessoas aqui, de um só povo, uma só nação!”, grita a mulher, sob aplausos.
Muitos que discursam no caminhão dizem que a manifestação não tem dia para acabar.