Os resultados da Lei da Ficha Limpa, que Lula quer mudar se for eleito
Passados 10 anos de sua efetiva entrada em vigor, a Lei da Ficha Limpa já retirou das eleições ao menos 4.630 políticos, segundo os dados disponíveis do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O número representa 0,4% do total de candidatos nas disputas de 2016, 2018 e 2020. Mas deve ser maior porque não leva em conta as candidaturas rejeitadas em 2012 e 2014, primeiros anos da aplicação da lei, que não foram consolidadas na base de dados da Justiça Eleitoral.
Nesse grupo estão candidatos condenados em órgãos colegiados por crimes eleitorais ou crimes comuns graves (como corrupção), gestores que tiveram contas julgadas irregulares ou que foram condenados por improbidade administrativa (com intenção de lesar os cofres públicos) e também agentes públicos que deixaram seus cargos em processos disciplinares. Essas são algumas das situações criadas pela Lei Complementar 135, de 2010, que ampliou o rol de inelegibilidades e antecipou a retirada de políticos das eleições.
Antes, isso ocorria só quando havia trânsito em julgado de uma condenação, isto é, quando se esgotavam todos os recursos possíveis na Justiça. A partir de então, passou a bastar uma condenação por um
tribunal composto por um grupo de magistrados para tornar a pessoa inelegível
por 8 anos.
A lei foi fruto de iniciativa popular, com apoio de mais de 1,6 milhão de cidadãos. E foi aprovada em maio de 2010 no Congresso com ampla adesão: na Câmara, foram 412 votos a favor e 3 abstenções; no Senado, foram 76 votos favoráveis e nenhum contrário. O então presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sancionou o projeto sem vetos. A expectativa era que a aplicação fosse imediata, mas o Supremo Tribunal Federal (STF) adiou a vigência para 2012.
Recentemente, o próprio Lula, que, em 2018, teve a candidatura à Presidência barrada em decorrência de duas condenações na Lava Jato, criticou em público a Lei da Ficha Limpa. “Acho que foi uma bobagem a gente fazer a Lei da Ficha Limpa tal como ela foi feita. Você muitas vezes pune uma pessoa e, três meses depois, essa pessoa readquire o seu direito de ser candidata. É preciso a gente dar uma rediscutida na Lei da Ficha Limpa”, disse o petista, em entrevista a uma rádio de Belo Horizonte (MG) no dia 17.
Parlamentares importantes do PT também não escondem o repúdio à lei. Numa entrevista ao site de notícias jurídicas Conjur, no ano passado, o deputado Paulo Teixeira (SP), da executiva nacional do partido, disse que a lei foi aprovada em meio a outras propostas “autoritárias”, como a Lei contra as Organizações Criminosas e a Lei Anticorrupção. “Praticamente esterilizou uma geração de políticos que perdeu a sua condição de continuar disputando por critérios muito subjetivos. Algumas pessoas que são honestas, que nunca cometeram crimes, mas perderam seus direitos políticos”, disse o deputado.
Lula tornou-se novamente apto a concorrer porque teve as condenações anuladas pelo STF no ano passado, quando a maioria dos ministros considerou que a vara do ex-juiz Sergio Moro, em Curitiba, não tinha competência para julgá-lo por corrupção e lavagem de dinheiro.
Assim como Lula, vários outros políticos famosos condenados na operação ou em outros escândalos agora tentam reverter a inelegibilidade para disputarem as eleições deste ano.
Tentativas de derrubar ou relativizar a Ficha Limpa
Desde 2010, a Lei da Ficha Limpa é alvo de contestações. Naquele ano, o STF impediu que ela fosse aplicada de imediato nas eleições. Em 2012, a Corte considerou a lei constitucional. Em 2017, o Supremo expandiu sua aplicação para casos por abuso de poder político nas eleições ocorridos antes da entrada em vigor – assim, políticos condenados pelo delito antes de 2010 também deveriam ficar inelegíveis por 8 anos.
Em março de 2022, o STF rejeitou uma ação que poderia reduzir, na prática, o prazo de inelegibilidade. O PDT queria descontar dos 8 anos o tempo que um político recorreu e cumpriu pena. Mas a maioria dos ministros nem sequer aceitou analisar o pedido, já negado em 2012. Em agosto, o STF também decidiu que novos prazos, mais curtos, de prescrição da Lei de Improbidade Administrativa não retroagiriam, o que poderia anular várias condenações que geraram inelegibilidades.
Novas ações, no entanto, já chegaram à Corte neste ano para relativizar as regras da lei. O partido Solidariedade pediu que candidatos que completem o prazo de inelegibilidade até dezembro, data da diplomação dos eleitos deste ano, possam concorrer em outubro. O Pros, por sua vez, quer ampliar o uso da ação rescisória para suspender condenações que gerem inelegibilidade.
“Fichas sujas” que tentam driblar a lei
Nas eleições deste ano, vários políticos notórios barrados pela Lei da Ficha Limpa tentam se candidatar novamente. A própria legislação permite essa brecha, por meio de decisões liminares que suspendam a condenação que gerou a inelegibilidade.
O ex-deputado federal Roberto Jefferson (PTB-RJ), por exemplo, é candidato a presidente. Ele havia sido condenado no caso do mensalão, em 2013, pelo STF. Em dezembro de 2015, teve a pena extinta, beneficiado por um indulto presidencial. Mas, segundo o Ministério Público Eleitoral (MPE), está inelegível até dezembro de 2023. O MPE alega que o perdão não alcança os chamados efeitos secundários da punição – no caso, a inelegibilidade imposta pela Ficha Limpa. Por isso, o órgão já pediu ao TSE para derrubar sua candidatura presidencial. O relator do caso, ministro Carlos Horbach, já vetou o uso de fundos partidário e eleitoral do PTB para bancar sua campanha.
Outro notório ficha suja que agora tenta se reabilitar é o ex-governador do Distrito Federal José Roberto Arruda (PL), condenado em duas ações de improbidade administrativa ligadas à Operação Caixa de Pandora – deflagrada em 2009 para apurar um esquema de corrupção no governo distrital, que comandava à época. Acusado de receber propina em contratos de informática e de comprar apoio parlamentar com verba pública, Arruda teve a condenação confirmada na segunda instância. Agora, tenta se candidatar a deputado federal, alegando prescrição de seus processos com base na nova Lei de Improbidade. No dia 18, o STF decidiu que as novas regras processuais não voltam no tempo e, com base nisso, o MPE pediu ao TRE-DF o indeferimento de seu registro de candidatura, com base na Ficha Limpa.
Também está com a candidatura em xeque o ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha (MDB-SP), que tenta voltar à Casa. Ele está inelegível porque em 2016 teve o mandato cassado, após ser citado nas investigações da Operação Lava Jato. Em julho, um desembargador federal de Brasília suspendeu a inelegibilidade, acolhendo alegações de que ele não teve direito à ampla defesa no processo. No último dia 18, porém, o presidente do STF, Luiz Fux, suspendeu essa decisão, restabelecendo sua inelegibilidade. Considerou que a decisão anterior interferiu em atos internos do Legislativo.
O atual presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), também foi condenado duas vezes por improbidade administrativa, acusado desviar recursos da Assembleia Legislativa de Alagoas. Uma das condenações, por quitação de empréstimos pessoais com dinheiro público, foi confirmada em 2016 na segunda instância e, por isso, ele deveria ter ficado inelegível pela Lei da Ficha Limpa. Em 2018, ele conseguiu se candidatar porque recorreu da sentença e obteve um efeito suspensivo no Tribunal de Justiça de Alagoas (TJ-AL). Agora, sua ex-mulher, Jullyene Lins, que também é candidata a deputada, impugnou sua candidatura, com base na mesma condenação de 2016, cujo recurso tramita em sigilo no Superior Tribunal de Justiça (STJ).
O que dizem apoiadores e críticos da Ficha Limpa
Idealizador da Ficha Limpa, o ex-juiz e advogado Marlón Reis diz que a lei é foi um marco divisor. Segundo ele, antes ninguém ficava inelegível porque condenações nunca transitavam em julgado. Ele diz que a lei continua sendo alvo de contestações justamente em razão de sua eficiência para retirar da disputa políticos condenados.
“Os setores que se incomodam com a lei são aqueles que correm o risco de sofrerem as consequências dela. Porque, da sociedade, o que a gente recebe de críticas, é ao contrário, de que a lei deveria ser mais rigorosa. E ela não é excessiva. Construímos um instrumento moderado e eficiente. Não é de nenhuma maneira draconiana”, diz Reis.
Ele afirma que a lei é moderada justamente porque permite aos políticos condenados suspenderem essas decisões caso a própria Justiça entenda que possam ser injustas. “O sistema jurídico permite, se o sujeito demonstrar que tem um risco grave e que possa ser submetido a uma injustiça, que seja autorizado a participar do processo eleitoral. Isso está na Lei da Ficha Limpa, que não é um instrumento ditatorial. Com isso, não se compromete o direito fundamental dos candidatos”, diz.
Ex-juiz do Tribunal Regional Eleitoral de Santa Catarina (TRE-SC), o advogado e doutor em Direito Marcelo Peregrino é um dos maiores críticos no país da Ficha Limpa. Para ele, a lei é uma “tragédia” e “uma das maiores violações aos direitos políticos dos cidadãos desde o AI-5”. “Ela terceirizou a escolha dos cidadãos para o Poder Judiciário e permitiu que a competição eleitoral fosse substituída pela judicialização da política. Ao invés de eu ganhar do adversário no voto, eu promovo sua inelegibilidade”, diz Peregrino.
Ele critica pontos da lei que também tornam inelegíveis
pessoas que respondem a processos disciplinares em órgãos públicos e que, caso renunciem,
também são enquadrados. “Um presidente da República que esteja sofrendo um
impeachment, para impedir uma grave crise social e política, ele não pode renunciar,
porque fica inelegível por oito anos. Você cria uma crise política, porque o
presidente é obrigado a pagar para ver e ir até o final. É uma estupidez.”
Peregrino considera que a lei permite a contaminação do Judiciário por interesses políticos. “Um juiz corrupto, quando quer favorecer um candidato, deixa para julgar a ação de improbidade depois da eleição. Ou, se quer prejudicá-lo, antecipa o julgamento.”